Estou sentada num banco de um ônibus público, voltando para casa. Homens, mulheres, idosos e crianças estampam seu cansaço rotineiro em suas testas. Alguns conversam com amigos, alguns até puxam papo com um desconhecido, outros (como eu) simplesmente navegam nas letras de um cantor talentoso. Fico num canto, olhando para a janela. Eu sempre gostei de ficar assim, observando a paisagem – que não era tão bela assim –, batendo meus dedos suavemente na janela e deixando que meus fones de ouvido cumpram a função de ecoar a bela voz de Corey Taylor sobre todo o meu sistema auditivo.
Um homem senta-se ao meu lado. Era alto, grisalho, com cheiro de borracha e tão acima do peso que parecia beirar uma hipertensão. O homem se reconfortou em seu assento, demonstrando a todos seu cansaço. Ele se recosta numa posição de pouco mais de 100° e navega em seu mundo interior. Ele parecia se sentir quase confortável.
Isso seria ótimo, se eu não estivesse pior graças a ele.
O desconhecido me esmagou para a janela do ônibus somente com suas pernas. Espero um tempinho, na esperança de ele estar apenas se espreguiçando, ou algo do tipo, mas o tempo passa e o senhor continua a me esmagar com suas pernas abertas.
Olho incrédula para ele, que esboça uma feição de questionamento, mas pouco demais torna a se recostar, ignorando minha presença, me comprimindo e estragando meu clima gostoso com a janela e a música de Corey Taylor. Ninguém olha para nós, ninguém diz nada, ninguém vê o erro.
Porque aquilo era… “normal”.
Enquanto era espremida como uma lata de refrigerante, me peguei pensando sobre aquilo, e percebi algo.
Eu não consigo me sentar com as penas abertas.
Sempre fui criada de forma conservadora, forma esta que abomina determinadas atitudes vindas de uma mulher, como sentar-se com as pernas abertas. Hoje, por educação – ou não –, eu simplesmente não consigo sentar-me relaxadamente não somente em lugares públicos, como também em minha própria privacidade.
Eu não consigo “deseducar” meu corpo neste quesito, mesmo sabendo que esse tipo de repreensão sobre as mulheres é simplesmente um reflexo de uma sociedade conservadora e patriarcal. E realmente não há resposta plausível para se justificar o fato de o homem poder sentar-se da forma que quiser e a mulher não. Mas algo é evidente: o homem é privilegiado.
A sociedade acha feio e desrespeitoso ver mulheres sentando-se com suas pernas abertas, alguns relacionam seu repúdio com a impressão de que quando a mulher senta-se com as pernas abertas, está querendo expor sua genitália (como se os homens não tivessem uma), mas para o homem, não há nada de errado nisso.
E mesmo tendo consciência de que o machismo é evidente demais nessa situação, eu simplesmente não consigo me sentar com as pernas abertas.
Meu cérebro foi trancado por correntes que em toda a sua composição férrea estava gravado: “isso é certo” e “isso é uma abominação”. Meu cérebro estava em sono profundo, e mesmo tendo despertado, sente os reflexos da corrente conservadora. Mas esta é apenas uma suposição para o fato de eu não conseguir me sentar com as pernas abertas.
Acho que estou livre, mas não me sinto. E me sinto livre, mas não estou.